Foi um líder espiritual notável. Uma figura politicamente determinante. Mas também, nalgumas matérias, um homem excessivamente resistente ao mundo moderno. Apagar ou minimizar qualquer destes aspectos seria um exercício de desonestidade e hipocrisia face à minha vivência como católico nestes vinte e seis anos. Por isso, republico sem alterações um texto que apareceu no semanário O Independente aquando dos vinte e cinco anos do pontificado de João Paulo II.
UM PAPA PARADOXAL
1. Nas habituais arrumações simplistas do universo católico em «conservadores» e «progressistas», esquece-se que Karol Wojtila tem sido sempre uma figura complexa e paradoxal. Desde o início do seu pontificado – fez esta semana vinte e cinco anos – o Papa tem desempenhado um papel determinante nos eventos contemporâneos. Só um anticlericalismo míope ou um saudosismo vermelho pode ignorar que a eleição de um Papa polaco em plena Guerra Fria e as suas repetidas viagens e intervenções foram decisivas para a queda do comunismo no bloco de Leste. Mas isso não torna necessariamente este Papa um homem «de direita». Isso foi bem visível recentemente, quando a esquerda, que habitualmente o fustiga, veio elogiar a oposição frontal à guerra no Iraque, enquanto alguns dos mais ferverosos vaticanistas vinham a público declarar que «entendiam» a opinião papal, embora não estivessem de acordo. O Papa tomou outras posições que desagradam a boa parte dos sectores ditos «conservadores», como um reiterado discurso sobre os sistemas económicos que quase põe no mesmo patamar de indignidade os regimes socialistas e os regimes capitalistas. Para João Paulo II, o socialismo marxista era inimigo da liberdade, mas o capitalismo também traz desigualdades, injustiças e, sobretudo, inúmeras e perigosas tentações. No plano público, isto é, o que transcende a comunidade dos fiéis, o Papa tem sido guiado pela sua concepção de uma sociedade livre mas equilibrada, longe das ditaduras políticas mas também a salvo dos excessos da liberdade. Uma posição provavelmente insustentável, visto que a democracia é desequilibrada por natureza, mas com um grau notável de seriedade e coerência. E que não pode ser caricaturada em termos de «esquerda» e «direita». O historiador Timothy Garton Ash, num texto sobre os vinte anos da eleição do Papa, republicado no livro History of the Present, resumiu o legado do Sumo Pontífice de forma original, dizendo que para os agnósticos (como o próprio Ash) João Paulo II foi um Papa excelente, nomeadamente pela sua contribuição para o colapso comunista e para uma cultura da paz; já os católicos, ironizava o historiador, podem ter algumas razões de queixa.
2. E, na verdade, bem diferente é o panorama interno, isto é, as questões que dizem respeito apenas aos católicos. Nesse domínio, algumas teses defendidas pelo Papa são, no mínimo, questionáveis, e têm sido muito contestadas. Comecemos pela mais evidente, ou pelo menos a mais mediática: a moral sexual. No que concerne ao aborto a intransigência do Papa corresponde a uma defesa inquestionável da concepção de «vida humama» tal como o cristianismo a entende. Mas noutras matérias, em que estão em causa comportamentos consensuais entre adultos, os sinais do Vaticano têm sido desanimadores. A recusa peremptória da contracepção representa um retrocesso face à própria abertura que os cardeais do Concílio Vaticano II demonstraram há quarenta anos, abertura essa, é certo, cedo contrariada por Paulo VI. Mas se, do ponto de vista meramente de princípio, a condenação da pílula e do preservativo surge como discutível, mais discutível se torna quando aplicada a duas situações concretas. Assim, que sentido faz recusar a contracepção quando se condena também o aborto, uma vez que aquela seria uma maneira priveligiada de impedir este? E depois, face à sida, torna-se chocante que a Igreja funcione como obstáculo à prevenção da doença, sobretudo em continentes, como o africano, onde a pandemia alastra e a força da Igreja sobre os costumes é grande. O mesmo vale para a homossexualidade, matéria em que a Igreja parece alheada dos estudos que demonstram que se trata de uma orientação que não pode ser tratada como uma doença ou sublimada com um apelo irrealista à castidade perpétua. Finalmente, a associação estrita entre a sexualidade e o casamento é letra morta nos países ocidentais, e a Igreja, em vez de sublinhar o papel dos afectos numa sociedade de mercantilização do sexo, fica contente por manter intocável a mera proibição, enquanto os fiéis ignoram (sem sombra de culpabilidade) esse ensinamento sociologicamente desfasado.
3. Também na organização interna da Igreja, houve alguns sinais preocupantes. A «vaticanização» progressiva não traz nenhum benefício aos cristãos, nem o autoritarismo em matérias teológicas, nem a notória influência de sectores obtusamente integristas, nem o papel doutrinariamente rochoso da Congregação para a Doutrina da Fé (mesmo em assuntos secundaríssimos como o celibato). Elementos de democracia interna – organizativa, entenda-se, não doutrinária -, de colegialidade, de alguma autonomia das comunidades e de livre discussão teológica seriam certamente aconselháveis para a saúde da Igreja, e em muitos casos retomavam algumas das mais interessantes e dinâmicas tradições do cristianismo, e mesmo do catolicismo. É certo que não se pode cair na anarquia doutrinal, e que o Vaticano fez bem em condenar o abstruso «catolicismo marxista» ou as interpretações «metaforizantes» das verdades fundamentais da fé. Mas a Igreja tem de saber integrar-se em sociedades democráticas, e perder toda uma ganga absolutista e autoritária. João Paulo II, nestas matérias, tem sido o «guardião dos selos», mas denota claramente a mentalidade de quem foi marcado pelo nazismo e pelo comunismo, e receia em demasia a mentalidade democrática.
4. Estas reservas não fazem esquecer o notável legado deste Papa. Sobretudo numa evangelização incansável e que tem contribuido para tornar cada vez mais universal o catolicismo (contrariando o seu ocaso na Europa): nas viagens apostólicas do Papa, tantas vezes ridicularizadas pelos ignaros, que constituem o contributo mais original deste longo papado; no novo Código de Direito Canónico e no novo Catecismo (este manchado por uma lamentável cedência na matéria da pena de morte); numa série de encíclicas e outros documentos magistrais sobre quase todos os grandes temas, pese embora o estilo pouco convidativo; numa aproximação ecuménica às igrejas cristãs e num diálogo com outras religiões; numa vaga de beatificações e canonizações sem precedentes, que apresentam aos cristãos centenas de modelos de conduta, e todos enriquecedoramente diversos; e, finalmente, num exemplo notável de sacrifício físico e moral, mesmo se porventura excedendo os limites do razoável. Depois de resolvidos e apagados da memória muitos dos impasses e contradições acima descritos, João Paulo II ficará, com toda a certeza, como um dos Papas fundamentais da história do catolicismo. [P.M.]
ADENDA: Um novo artigo de Garton Ash que diz essencialmente o mesmo que o texto a que faço alusão.