FINALMENTE EM PORTUGUÊS: A Itália moderna teve (tem) um númuero muito alto de grandes poetas. O maior de todos foi este senhor, Eugenio Montale. É também, provavelmente, um dos mais difíceis de ler no original, um dos que mais pede tradução competente. Agora, pela mão da Assírio e Alvim (e do tradutor José Manuel Vasconcelos) temos uma substancial antologia poética de Montale na nossa língua. Um marco, visto que só encontrávamos poemas soltos (e uma obra em prosa). Se comprarem só um livro de poemas em 2004, comprem este. [P.M.]
Fora do Mundo
Notas & Apontamentos. [Pedro Lomba, Pedro Mexia e Francisco José Viegas] foradomundo@oninet.pt
9/30/2004
INDIE LISBOA, DIA 6: Noite Escura (2003), de João Canijo (Portugal)
«A vida é estupidez e descontração natural». Eis uma tirada que resume bem o espírito «sleazy» de Noite Escura. João Canijo tem sido o grande vate do Portugal pimba. Sapatos Pretos (1998) é o zénite desse universo de frustração, mau gosto e violência. Sem o talento de César Monteiro, Canijo consegue, ainda assim, percorrer os terrrenos mais avacalhados (com abundância de vernáculo), mas longe do choradinho do cinema Casal Ventoso que fez escola na última década.
Noite Escura é, no essencial, não uma sitcom mas uma «situation tragedy»: um pai, dono de um bar de alterne, vende a filha como prostituta para pagar as dívidas e safar o coiro. O filme é isto, e apenas isto. O único desenvolvimento é a tentativa da irmã (uma fenomenal e quase irreconhecível Beatriz Batarda) para salvar Sónia. Esta julga que vai fazer um «casting» como cantora para um produtor russo, e em vez disso está prometida como pega algures para Espanha.
Canijo filma esta situação trágica de modo intenso e opressivo, com as personagens umas em cima das outras, banhadas em luzes vermelhas e azuis, dizendo palavrões de caixão à cova, aos berros, aos empurrões, os diálogos sobrepostos e muitas vezes inaudíveis. Putas, chulos, patroas, mafias de Leste, eis a fauna deste estranho modo de vida, entre o crime e o simples desespero. Num certo sentido Noite Escura é um filme totalmente conseguido, uma vez que cumpre os propósitos de nos mostrar uma descida à sordidez de um submundo. Mais: consegue fazê-lo em tom de tragédia, sem comédia involuntária (embora a linguagem, por vezes, provoque inevitavelmente o riso). Se existe algum défice nesta fita está precisamente no total dependência de uma única situação, só com um desenlace final. Apesar de tudo, a regra clássica de tragédia supunha uma ou outra peripécia, o que não acontece neste caso. Nesse sentido, o filme é equilibrado mas sem rasgo, sendo a única excepção a admirável cena em que a filha confronta o pai com a suspeita do seu verdadeiro destino.
Com Noite Escura, João Canijo dá ainda mais consistência a uma obra coerente, narrativa sem concessões, marginal sem pose, apostada numa antologia de um Portugal sofrido, triste, porco, lamentável. Não é exactamente um postal turístico, mas não é para isso que serve o cinema. [P.M.]
9/29/2004
INDIE LISBOA, DIA 5: Temporada de Patos (2004), de Fernando Eimbcke (México)
Temporada de Patos é um filme extremamente simpático e extremamente divertido. Mas é apenas uma curiosidade.
Filmado a preto-e-branco, muito claramente com dez tostões, não passa de (literalmente) uma sitcom. Isto é: uma situação (dois adolescentes sozinhos em casa) que origina efeitos cómicos (os jogos de vídeo, o aborrecimento, o caos doméstico). Esses efeitos são potenciados pelo aparecimento de uma vizinha, igualmente adolescente, e de um homem que vem entregar pizzas. Ela está aborrecida e no engate. Ele não consegue que lhe paguem e fica desesperado. E depois, há um quadro com patos.
São muitos os recursos cómicos de Fernando Eimbcke, quase sempre em cenas soltas, como que flashes, mostrando o que fazem os burgueses sem nada que fazer, o que fazem as pessoas para fintar a solidão, o que faz não fazer nada. As gargalhadas são francas e naturais, porque a situação funciona, os actores amadores têm o registo adequado, e só existem pequenos nadas (como uma falha na electricidade) que dão para o que podíamos chamar um sketch, sem continuidade ou coerência. O mais interessante é que começamos a perceber que a comédia esconde quatro dramas. Um dos rapazes tem os pais em processo conturbado de divórcio. O outro rapaz lida como pode com a sua nascente homossexualidade. A vizinha está também dominada pela vontade do sexo (para além de que faz anos e ninguém se lembrou). O homem da pizza, finalmente, é um tonto bom, com uma existência banal e sem saída. A comédia faz naturalmente contraponto com estes dramas, mas também aumenta o drama, como contraste. E assim o filme tem, no quadro dos patos, uma metáfora quase sentimental (mas que não chega a isso) sobre uma espécie de fraternidade dos tristes e de esperança no futuro.
É impossível não gostar deste filme. Mas é essencialmente uma curta-metragem insuflada. Fernando Eimbcke fica em observação. [P.M.]
9/28/2004
CINEMA DO MUNDO: Não sei em que ano foi, talvez 1987. O filme era chinês: Milho Vermelho, de Zhang Yimou. Não sei o filme me provocaria agora o mesmo efeito que teve então. Na altura, foi um deslumbramento. Essencialmente porque era o primeiro filme asiático a que assistia (com excepção dos Ozu, Mizoguchi e Kurosawa). Pouco depois, foi a vez de um filme do Burkina Fasso (Yeelen). E descobri que o cinema era mundial. Coisa que não me passava pela cabeça, aos quinze anos.
Sou um grande adepto do cinema americano, mas é importante sabermos que existe cinema no mundo (quase) todo. Vi Milho Vermelho no Quarteto. Mas, desde 1987, é essencialmente a Paulo Branco que devemos os filmes georgianos, mexicanos e palestinianos que chegam cá. Razão para sermos gratos. [P.M.]
INDIE LISBOA, DIA 4: 10 on Ten (2004), de Abbas Kiarostami (Irão)
Não é preciso ter visto Dez para compreender 10 On Ten. Embora o filme de 2002 funcione como o motivo imediato, este documentário é essencialmente uma aula (em dez lições) sobre um certo entendimento do cinema. Uma aula dada por um iraniano que muitos consideram um dos sete ou oito maiores cineastas actuais.
10 On Ten usa o mesmo esquema da longa-metragem que glosa: só que em vez de uma mulher que dialoga com outras mulheres, temos um homem (Kiarostami) que monologa para um público. Um público que o iraniano mais que uma vez identifica como alunos de cinema (na sessão que eu vi batia certo). Muito boas são as considerações acerca do automóvel como «huis clos» e local de grande potencialidade dramatúrgica. Num carro, as pessoas geralmente não se olham e (talvez por isso) dizem muitas coisas banais à mistura com muitas coisas decisivas. Kiarostami conta mesmo que um amigo lhe disse que teve todas as conversas importantes com a mulher precisamente no carro. O fetiche fica assim legitimado.
As lições de Kiarostami são globalmente interessantes, embora demasiado palavrosas. Num ou noutro momento (quando o tema é mais genérico) espreitam algumas platitudes oliveirianas. Kiarostami é bastante mais eficaz quando discute a técnica. O seu entusiasmo pela câmara digital (que quase aproxima da famosa «camera stylo») cai uma ou outra vez no deslumbramento, mas faz todo o sentido face a um filme como Dez, que exigia uma câmara pequena e móvel, sem equipa técnica. Para o cineasta, a câmara digital é bloco-notas e aparelho de captação, uma ferramenta global (e portátil) que revoluciona o estatuto da produção de imagens. Assim, Kiarostami sente que o cinema foi de algum modo reinventado e fica feliz com o papel que tem nesse momento histórico.
Kiarostami explana o seu método, que por vezes se aproxima do de Bresson, maxime nalgumas teses sobre o uso de amadores ou na crítica a um uso excessivo da música. Mas não esperem o grau de sofisticação teórica ou estilística que encontramos em Bresson. Aqui temos apenas reflexões sobre um ofício, ditas para a câmara, com uma tranquilidade e uma candura que anulam o que, a espaços, passaria por arrogância. Kiarostami considera-se um «auteur» (diz a palavra mesmo assim, em francês), e para os menos fãs do seu cinema pode soar a fanfarronice uma ou outra afirmação mais «autoral».
O problema é que o estatuto, muito invocado, de autodidacta, leva Kiarostami a simplificar imenso certas questões, enquanto noutras se mostra extremamente naif. A constante referência ao «cinema americano» é uma generalização que não aguenta o escrutínio. Mesmo que se entenda «cinema americano» como «Hollywood», nada feito: Scorsese e American Pie são ambos «Hollywood». É fácil perceber que um iraniano lide de forma problemática com a América, mas não adianta o recurso à caricatura. Kiarostami cita cineastas europeus e está muito atento aos críticos europeus, mas não pode ignorar que críticos e cineastas da Europa foram os primeiros a pôr nos píncaros o cinema americano. O iraniano reconhece isso mesmo na afirmação (curiosa) de que Hitchcock podia ter dirigido os seus filmes através do telefone, de tão rigoroso que era na preparação de uma obra. Embora isso pressuponha uma defesa de um cinema «espontâneo» (o de Kiarostami, naturalmente), é também um enorme elogio (mesmo que involuntário) a um método rigoroso. Um método «americano».
Depois, há um ponto verdadeiramente aflitivo. É que Kiarostami se refere repetidamente à «realidade» ou mesmo à «verdade». Como se bastasse ligar a câmara e se encontrasse uma «realidade» transparente, e o filme produzisse uma «verdade» que existe disponível no mundo. Desconheço a tradição filosófica persa (ou árabe) em que Kiarostami se formou. Para um ocidental, a «realidade» (no cinema ou fora do cinema) não é uma categoria evidente, que exista indubitavelmente, sem problemas e obstáculos. E se a «realidade» não se encontra assim de caras, ainda menos uma mera reprodução técnica produz uma «verdade» (se é que esta palavra tem algum sentido). Kiarostami cita Zavattani por duas vezes: mas em vez de se contentar com a teorização um pouco ingénua do neo-realismo, não fazia mal nenhum se lesse, por exemplo, um bocadinho de Wittgenstein.
O melhor do filme são alguns exercícios, como esse de ver uma cena sem som e ouvir o som sem imagem, percebendo a diferente função e a diferente legibilidade dos dois registos. Ou a experiência de ter visto Cenas da Vida Conjugal sem legendas (e duas vezes), imaginando uma interpretação que mais tarde uma versão legendada veio desmentir (Kiarostami gostava mais da sua interpretação do que da de Bergman). Ou alguns exercícios poéticos sobre a estrutura de um filme, a ambiguidade, a dissociação de significados que produz a metáfora. Kiarostami é essencialmente um poeta. Mas, como muitos poetas, nem sempre é um bom teórico. E é um filósofo muito atamancado. [P.M.]
9/27/2004
TRADUÇÃO SIMULTÂNEA: OK, agora são três da manhã, mas assim que as lojas abrirem façam o favor de ir a correr comprar este DVD. Se o dinheiro não serve para isto, não serve mesmo para nada. [P.M.]
SANTO: Não conheço quase nada do cinema latino-americano actual. Mas La Niña Santa fez-me pensar no fantástico Y Tu Maman Tambien, de Alfonso Cuaron (México), um dos grandes filmes sobre sexo dos últimos anos, e um dos mais entesoantes (há edição portuguesa em DVD, nomeadamente na colecção do Público). Mas para perversidades católicas, o melhor mesmo são os filmes mexicanos de Buñuel, uma maravilha sempre na fronteira do pimba e sempre na fronteira do génio. [P.M.]
INDIE LISBOA, DIA 3: La Niña Santa (2004), de Lucrecia Martel(Argentina)
Ao segundo filme, Lucrecia Martel confirma que é um caso sério. Estupidamente não cheguei a apanhar a exibição lisboeta de La Ciénaga / O Pântano (2001), mas acompanhei os textos sobre esse filme de estreia, e deu para perceber que se tratava de retrato impressivo do enfado e da esterilidade da alta burguesia argentina, dado (dizem) com uma capacidade visual extraordinária.
La Ninã Santa tem a sua maior força na narrativa e não necessariamente no dimensão visual, embora a cenografia e a fotografia tenham a sua importância. A história, à partida, nem é muito prometedora: meninas católicas (isto é, reprimidas) que «descobrem a sexualidade». Felizmente, Martel não puxa demasiado por esta estafadíssima sinopse. Ou, por outra: pega nessa situação e faz disso um exercício mais complexo sobre o catolicismo e sobre a sexualidade.
Amalia tem dezasseis anos e vive com a mãe, divorciada, num hotel de que esta é gerente. Nesse hotel decorre um congresso médico. Amalia, que frequenta aulas de religião e moral nas quais se discute intensamente o tema do «chamamento» e da «vocação», é assediada por Jano, um médico introvertido e em evidente crise de antropausa. Nesse incidente, Amalia descobre a sua «vocação». Está decidida a redimir o pecador, não sem, pelo caminho, se apaixonar pelo pecado.
Além deste eixo dramático, existem outras figuras e outros enredos menores (mas não alheios ao drama central) que Martel cruza com mestria e maturidade. O «ensemble acting» é forte, todo a película demonstra solidez, clareza, mas também densidade. É curioso que Pedro Almodovar (através da El Deseo) apareça como um dos produtores do filme, porque a cineasta argentina demonstra algumas afinidades com o Almodovar mais recente: afinidades temáticas, decerto, mas sobretudo uma igual habilidade de escrita e dramaturgia. La Niña Santa tem uma desenvoltura narrativa extraordinária para uma autora com menos de quarenta anos e com apenas dois filmes em carteira. Exemplo disso são os suaves boicotes cómicos espalhados pelo filme (a empregada com o spray, por exemplo) ou a cena final. Na cena que esperávamos fosse a cena final, Jano iria confrontar-se com Helena (a mãe de Amalia), a quem tinham denunciado o assédio. Mais: era um confronto encenado, feito como representação final do congresso, sob o tema da «relação entre médico e paciente». Pois bem: Martel elide esse final temerário, preferindo ao melodrama analítico um desenlace que, não estando exactamente «em aberto», evita mostrar uma cena redundante e moralizante. Bastava essa suprema inteligência do final para percebermos que Martel não é uma cineasta qualquer.
Mas La Niña Santa tem ainda outros momentos fortes e perturbadores, que vêm essencialmente da adolescente María Alche que faz de Amalia uma figura complexa e cheia de paradoxos, misto de Bess McNeil (Lars Von Trier) e Mouchette (Bresson). Uma jovenzinha marcada por uma sexualidade doentia, tão reprimida como exuberante, facilmente reciclada em vitimização ou em «regeneração». Os seus olhos azuis sonolentos e ambíguos, a boca carnuda, o aspecto sisudo, adoentado e místico, constroem uma personagem fortíssima. Que se exprime em cenas fortíssimas: a dado momento Amalia entra no quarto do médico e espalha creme da barba no colarinho, creme que depois irá cheirar repetidamente, como que a conhecer o seu caçador mas também a sua presa. Essa imagem, cuja carga sexual não precisa de explicação, tem muito a ver com o ambiente carregado e malsão que todo o filme respira (e que, pelo que sei, existia ainda mais em La Ciénaga).
Um belíssimo filme, forte candidato a vencedor do Indie Lisboa. Pena a falha técnica que nos deixou uns vinte minutos sem legendas. Ainda assim, creio que o público não perdeu nada de fundamental, e que estamos a assistir, ao aparecimento de uma cineasta importante. [P.M.]
9/26/2004
GUERRA: Um visionamento paralelo a este filme de Errol Morris seria The Trials of Henry Kissinger, documentário de Alex Gibney e Eugene Jarecki (2002), a partir do livro de Christopher Hitchens (Mr. K, como é óbvio, não colaborou). Há em DVD.
Quanto às questões mais substanciais, temos o livro de Michael Walzer Arguing About War. Tradução portuguesa (A Guerra em Debate) da Cotovia. [P.M.]
INDIE LISBOA, DIA 2: The Fog of War, Eleven Lessons From the Life of Robert S. McNamara (2003), de Errol Morris (EUA)
Não podemos considerar um documentário político de Errol Morris sem o compararmos com a celebridade do momento: Michael Moore. Embora Moore e Morris partilhem o esquerdismo, a sua abordagem ao género «documentário» é diametralmente oposta. A de Moore é cómica, pessoal e pouco escrupulosa. A de Morris é solene, distanciada e laboriosa. Enquanto Moore se dedica à manipulação (não só dos factos mas do trânsito impuro entre factos e comédia), Morris manipula apenas a narrativa. Enquanto Moore caricatura e escarnece dos seus adversários, Morris oferece uma empatia fria ao seu objecto de estudo. Em Mr. Death (1999) Morris conseguiu pegar num negacionista (do Holocausto) e mostrar uma pessoa normal, convencida da sua verdadezinha, joguete de forças maiores, mas um «decent man» como os há aos montes. Um Eichmmann? Nem isso. Um tipo que faz o que lhe pedem e que é movido, como nós todos, pelo brio e pela vaidade. Em resumo: a verdade é muito importante para Morris, mas nos seus filmes a verdade não é um dado ideológico, mas um processo: é isso que faz de Morris um dos grandes documentaristas vivos (com Frederick Wiseman).
Em The Fog of War, Eleven Lessons From the Life of Robert S. McNamara, Morris entrevista longamente o secretário da Defesa de Kennedy e Johnson, um académico brilhante, um gestor de topo, um «falcão» arrogante, um velho digno, um espectador comprometido. É um filme sólido, sério, e que, como o subtítulo indica, pretende afirmar-se como uma lição de história. Um ancião da política, bastante lúcido e ainda mais fluente, revisita a sua intervenção directa ou indirecta na II Guerra Mundial, na crise dos misséis em Cuba e na guerra do Vietname. A estranheza rapidamente se instala: o McNamara de agora (com 87 anos) parece uma testemunha e um fautor da paz, quando foi um agente da guerra, sempre acusado de um fogoso «belicismo». Se existe um problema em The Fog of War é que McNamara, embora um excelente entrevistado (e com uma vitalidade surpreendente), está numa clara campanha de «whitewashing». Parece que não tomou decisões, apenas as exacutou. Umas vezes a culpa foi de Lyndon Johnson, outras foi da Guerra Fria («hell, it was hot war»), outros de um general fanático. Em suma: esta é a História segundo McNamara, o qual, embora um excelente guia, precisava de mais contraditório na entrevista. Mas talvez fosse impossível que o ardiloso Robert se prestasse a essas regras.
O filme baseia-se no mecanismo da entrevista indirecta. Morris não entrevista McNamara face a face mas através de ecrãs. Esse processo permite evitar o contacto visual directo que, segundo Morris, diminui a espontaneidade e a «sinceridade». Mas o método não traz nada de novo neste caso: McNamara é uma velha raposa, só diz o que quer, aceitou este filme claramente para deixar um testamento benigno de si mesmo. Mais: com o esquema das «onze lições» (numeradas em intertítulos) Mc Namara faz de sábio, lançando questões teóricas sobre a guerra. Por exemplo: se os crimes de guerra não são uma fatalidade. Se a desproporcionalidade é admissível. Se há diferença entre o criminoso vencido e o criminoso vencedor. Se a «boa-fé» basta para apagar a responsabilidade. Se a linha de comando dilui a decisão de cada um. Os americanos, que sempre lutaram em nome de um «bem» (como a liberdade) mas também de um «interesse» (a influência estratégica), cometeram crimes de guerra. Não se apaga, sem mais nem menos, o que aconteceu em Dresden, Tóquio, Hiroxima, My Lay. Pois bem: em que medida o estatuto de «líderes do mundo livre» menoriza esses crimes? Os bons motivos justificam as más acções? Que preço podemos e devemos pagar para o triunfo da liberdade? E quais são os motivos obscuros que se escondem sob motivos nobres como «a liberdade»?
Morris vê a guerra de duas maneiras. Como um palco das grandes questões éticas (sobretudo a responsabilidade) e como máquina de factos e números (notável uma cena com bombardeiros que largam números). McNamara era presidente da Ford quando foi chamado por Kennedy para secretário da Defesa e Morris sublinha esse aspecto empresarial da guerra, baseada em estudos, em estatísticas, na lógica de perdas e ganhos. Não estamos aqui na tese marxista da necessidade da guerra como vocação do capitalismo expansionista, mas não se elimina essa possibilidade. Morris não ilude o contexto da Guerra Fria, mas a Guerra Fria também não serve para branquear os crimes ou as falhas dos americanos. O que interessa a Morris, mais que as circunstâncias históricas, é uma reflexão sobre o poder americano, especificamente sobre o poder bélico americano. Ou, mais latamente: sobre a violência política exercida a nível estatal, tecnológico, desmesurado, inumano.
A entrevista, com alguns irritantes saltos de montagem, vai sendo acompanhada de imagens de arquivo, gravações de conversas entre dirigentes, uma ou outra cena simbólica (a persistente imagem do dominó, que passa de metáfora do comunismo para metáfora da responsabilidade). Os saltos cronológicos são muitos, e se algumas vezes resultam muito bem, noutros atenuam a força narrativa. The Fog of War está, formalmente, uns furos abaixo dos melhores filmes de Morris. Mas uma ou outra ideia formal consegue passar de modo eficaz para o plano moral: por exemplo, quando se contabilizam os mortos japoneses na II GM, cada cidade japonesa arrasada é comparada a uma cidade americana da mesma dimensão, evitando o efeito de estranhamento da «morte dos outros», longínqua e asséptica. Não são muitos esses momentos, infelizmente. No seu melhor, The Fog of War é um documentário «didáctico» de primeira ordem. Mas sem génio, como aquele que encontramos em The Thin Blue Line (1988). E a música previsível de Philip Glass, neste caso, só atrasa.
Do ponto de vista conceptual, o grande mérito do filme de Morris está em evitar a retórica balofa da «paz» e examinar os mecanismos da guerra. Nunca se afirma nem se demonstra que a guerra é injustificável, mas a cada momento somos confrontados com os «horrores da guerra» (lembremos Goya). Mais: o «nevoeiro da guerra», diz McNamara, perturba a lucidez que nos permite separar guerras e (actos de guerra) evitáveis de conflitos inevitáveis e actos de guerra inevitáveis de evitáveis. É bizarro que Robert McNamara seja o juiz destes eventos concretos e da sua moralidade abstracta, ele que teve influência directa sobre os eventos concretos. E essa bizarria ainda se acentua com a sua capacidade de dizer apenas o que quer dizer e evitar tudo o mais. Mas ficamos certamente com um poderoso contributo de «oral history», um método cada vez mais valorizado pelos historiadores.
Não sendo brilhante, The Fog of War mostra essencialmente que o documentário não se confunde com o Circo Chen. E, para que não fiquem dúvidas, este filme é (implicitamente) tão crítico da Administração Bush como a peixeirado do senhor Moore. Morris, que ganhou o Óscar de Documentário este ano, aproveitou a cerimónia para criticar Bush. Mas no seu filme, felizmente, foi à raiz ética da questão, de um modo mais fundo e mais abrangente. Não é um filme do outro mundo; mas também não é uma palhaçada radical chic. Here’s to that. [P.M.]
9/25/2004
CONSELHOS PARA INDECISOS: Aquilo que não gostas de fazer, não fazes. De quem não gostas, não gostas. O que não és, não és. Simples. [P.L.]
NEM SÓ DE CINEMA: vive o homem. Eu nas últimas semanas até ando a viver bastante de teatro. Está tudo explicadinho neste blogue sobre coisas urgentes. [P.M.]
NÃO ADMIRA: Admito: quando penso em cinema e em «relações» (em inglês: «relationships») costumo pensar neste senhor. Assim, não admira que as minhas «relações» (em inglês: «relationships») acabem sempre em desgraça. [P.M.]
INDIE LISBOA, DIA 1: Before Sunset (2004), de Richard Linklater (EUA).
Before Sunrise (1995) era um filmezinho emocionante e marcante sobre um amor súbito, supremo e fugaz entre dois miúdos, numa noite de Viena. Uma década depois, Richard Linklater regressa (quase) ao local do crime com Before Sunset. Jesse (Ethan Hawke) é agora um escritor de sucesso. Está em Paris a promover um romance, que tem como tema precisamente essa noite de há nove anos. Subitamente, Celine (Julie Delpy) reaparece. Não têm muito tempo: o avião que o levará para os EUA parte dentro de poucas horas. E assim os dois revivem, em 80 minutos (tempo real) a noite vienense e as suas vidas desde então.
A ideia de sequela era, à partida, perigosa. A sequela dá-se bem com géneros de acção e aventura, mas bastante mal com os outros. Salvo as devidas distâncias, não fazia sentido um «Paris, Texas 2», com Travis a regressar uma vez mais para saber se mãe e filho se davam bem. A brevidade (e a angústia adolescente) de Before Sunrise desaconselhava, portanto, novo episódio. O filme original, que deu para infindáveis tolices sobre os «afectos», tinha, em todo caso, uma frescura e uma força que seria disparate quebrar. No entanto, Linklater não falha totalmente a aposta. Before Sunset é um filme desnecessário mas não é um filme mau nem um filme que perturbe o original.
Uma conversa de 80 minutos pelas ruas de Paris dá para tudo. Com Rohmer, bem sabemos, é ambrósia dos deuses. Com outros, meramente um enfado. Em BS é uma simpatia. O filme é extremamente simpático, fluido, com momentos divertidos e outros tocantes. Os diálogos – escritos também pelos actores – abundam em small talk, provocações, brincadeiras, nostalgias, teorizações, queixumes. Em oitenta minutos, ele e ela abrem o coração, saltando de registo, mas com uma notável desenvoltura textual e interpretativa. Não sendo exactamente Tchekov, o diálogo em BS é orgânico, inteligente, bem estruturado. Na verdade, sente-se apenas a falta de alguns engasganços, tropeções, becos sem saída. Os actores parecem sempre demasiado à vontade, e isso retira muita da intensidade que existia em Before Sunrise.
Supostamente, o casal (agora com trintas) está na fase da desilusão, face aos incuráveis românticos (na casa dos vintes) que foram. A passagem da intensidade adolescente para um desapontamento de gente adulta é, aparentemente, a diferença específica de BS. Mas esse desapontamento, uma vezes quase neurótico, parece pouco convincente. Before Sunset é, como Before Sunrise, um filme romântico. Um filme que acredita na paixão e que vai mesmo ao ponto de transformar uma paixão brevíssima numa paixão duradoura, que escapou às manchas da domesticidade e das relações fracassadas. Nesse sentido, persiste alguma da magia entre um Hawke agora mais relaxado (e que entretanto se tornou um escritor de sucesso «in real life») e a sempre botticelliana Delpy.
Em suma: Before Sunrise está empenhado num distanciamento ilusório. Na verdade, quando chegámos ao fim, ele e ela estão apenas mais velhos, mas no mesmo registo fascinado. Before Sunset mostra uma fragilidade ainda perturbante, embora mais trabalhada. Mas está longe do original. E não tem muito cinema dentro. Só uma conversa. Com um final em aberto muito bom. Excepto se for sinal de que vem aí Before Daybreak. [P.M.]
9/24/2004
INDIE: Arranca logo à noite o primeiro Indie Lisboa, Festival Internacional de Cinema Independente, que até 2 de Outubro levará curtas e longas de todo o mundo ao mui nobre S. Jorge. Com uma secção competitiva e uma montra, incluindo uma merecidíssima homenagem ao festival de Sundance. Destaques óbvios: Errol Morris (Fog of War) e Richard Linklater (Before Sunset). Mas espreitem o programa completo no completíssimo site.
O Fora do Mundo foi contemplado com uma acreditação para o Indie Lisboa, por intermédio de uma bloguista que está na organização e a quem evidentemente agradecemos. Assim, durante uma semana, teremos textos sobre os filmes que me for possível acompanhar. Figuem ligados. [P.M.]
JUST HOLDING THE FORT: Não escrevi sobre os setenta anos de Leonard Cohen porque talvez o faça noutro lado. Ou talvez não. Embora o tenha como um dos cinco ou seis autores fundamentais, experimento uma notória dificuldade em escrever sobre Cohen. Dito doutro modo: em escrever sobre o a**r, sobre isso. Cito «Story of Isaac»: as mãos tremem com a beleza da palavra.
Mas aproveito para copiar para o blogue a letra de «On That Day», um dos temas do novo álbum. A linha de demarcação inatacável entre o histórico e o privado, como sempre. A recusa da demagogia. E a lição da memória, sem a qual nada vale a pena.
Some people say
It’s what we deserve
For sins against g-d
For crimes in the world
I wouldn’t know
I’m just holding the fort
Since that day
They wounded New York
Some people say
They hate us of old
Our women unveiled
Our slaves and our gold
I wouldn’t know
I’m just holding the fort
But answer me this
I won’t take you to court
Did you go crazy
Or did you report
On that day
On that day
They wounded New York
[P.M.]
TWIN PEAKS: Estamos de acordo: Russ Meyer não era nenhum Manet. Mas o velho tarado, que morreu esta semana com 82 anos, merece que o recordemos como o supremo vate das mamas. Nunca vi os filmes de Russ Meyer. Mas agradeço o seu incansável elogio a essas inestimáveis glândulas. E que o outro mundo tenha a sua dose. [P.M.]
NINE ELEVEN MOVIES: Existe uma conversa extremamente pateta que consiste na demonização do «cinema americano». E tenho pena que gente que admiro, como João Botelho, embarque nessa menoridade intelectual. É que salta aos olhos que não existe «o» cinema americano, mas uma diversidade de estéticas que, por muito que custe aos straubianos ortodoxos, dá corpo ao cinema contemporâneo mais estimulante (se exceptuarmos alguns cineastas asiáticos).
Ainda assim, reconheço que o cinema americano «mainstream», mesmo quando emprega cineastas talentosos, acaba quase sempre enclausurado por concessões, desaproveitando boas ideias e os meios adequados para as concretizar.
Pensemos em dois filmes actualmente em cartaz: Terminal, de Steven Spielberg e The Village, de M. Night Shyamalan. São, diz a crítica, dois exemplares do cinema marcado pelo 11 de Setembro, um em versão de parábola «realista» e outro em parábola «fantástica». Mas são, cada um a seu modo, filmes falhados.
Terminal tinha tudo para me agradar. É um Spielberg «light», e eu gosto do Spielbergs «light» (que maravilha é o lúdico Catch Me If You Can e que bosta é um Amistad). Situa-se num «locus» que me atrai bastante, o aeroporto. Mostra uma excelente noção do espaço e do movimento, herdeira de (entre outros) Jacques Tati. E é filmado com destreza e elegância. Além disso consegue, com economia dramatúrgica, equacionar temas como «o estrangeiro», «a ameaça» ou o mote «America is closed» de forma muito produtiva. Mas depois estraga tudo. Estraga tudo com os caprianismos lamechas, com a «love story» da praxe. Se um homem preso num aeroporto seria motivo de meditação e metáfora, Tom Hanks a sacar Catherine Zeta-Jones de tão totó e bonzinho que é, eis uma que não lembra ao capeta.
Mas The Village é ainda mais fatela. Não me surpreende: nunca liguei peva a M. Night Shyamalan. Dos filmes que conheço, só gostei de Unbreakable. Já Signs era péssimo, mergulhado numa religiosidade de pacotilha que é imagem de marca do cineasta. Embora gente com critério garanta que temos um novo Hitchcock na vizinhança, seria mais correcto dizer que Shyamalan é o contrário de Hitchcock; enquanto Sir Alfred tinha muito mais substância do que o próprio gostava de admitir, o seu presuntivo herdeiro pretende ir muito além da chinela. O princípio do «suspense», que em Hitchcock era técnico e quase ontológico, é em Shyamalan um truque de feira. E a sua religiosidade é apenas um amontoado das mais banais «inquietações». Shyamalan, que tem algum talento como argumentista e que sabe filmar, é um primariozinho, um fulano sem a menor densidade. Mais uma vez isso fica provado em The Village. Como disse, alguns críticos apontaram para a parábola nine eleven, neste caso com a argumento («liberal») que se traduz na noção de que «o inimigo» não é uma entidade exterior; o «inimigo» somos nós mesmos. Acontece que isso, que seria estimável, está longe de ser o centro do filme. Quase até ao fim estamos condenados a uma parvoíce com laivos de Blair Witch. Depois, no «twist» final (e Shyamalan é responsável pela cansativa moda da reviravolta) temos uma outra metáfora, bem menos «liberal». Não vou contar o filme, mas digo-vos que tem a ver com isto: com a recusa do mundo moderno. Fica então claro que Shyamalan é um reaccionário com tintagem mística. E essa sempre foi uma mistura deplorável. Só se salvam os actores: um William Hurt saído do Antigo Testamento, um Adrien Brody em louco da aldeia e a cândida e comovente Bryce Dallas Howard. Mas não esperem o futuro do cinema da mão do Senhor Noite. [P.M.]
9/23/2004
BEM DITO: Independentemente do tema em causa (o SMO), dei agora com a melhor definição da minha posição política: sou, efectivamente, «contra qualquer coisa que inclua a palavra "obrigatório"». [P.M.]
UMA É LOURA OUTRA É MORENA: Graças ao nosso amigo Andy, dei com um curioso teste. É um questionário com resposta final que nos diz qual o nosso candidato nas presidenciais americanas. O nosso candidato em termos de empatia, e não em função da concordância política.
A questão concreta não me apoquenta nada, primeiro porque não sou americano, depois porque se fosse provavelmente votava em branco (lá fora como cá dentro, é o meu lema), e finalmente porque ambos os candidatos são francamente desinteressantes como pessoas. Assim, o aspecto mais curioso do teste é ficarmos a conhecer um nadinha mais a nossa própria personalidade para sabermos em que medida a nossa personalidade interfere no modo como vemos os outros e nos damos com os outros.
O teste, como disse, é com Kerry e Bush. Eu preferia que fosse com outras pessoas. Mas lá na América talvez não as conheçam.
One of the objectives of this research is to learn more about the relationship between people's personalities and the (perceived) personalities of political candidates. Personality researchers often describe people's personalities with respect to five major personality dimensions: Extraversion (the extent to which a person is sociable, exudes positive energy, and is behaviorally active), Agreeableness (the extent to which a person is warm, friendly, and cooperative toward others), Conscientious (the extent to which the person is dependable, prompt, and courteous), Emotional Stability (the extent to which the person is secure and free of anxiety), and Openness (the extent of a person's creativeness and willingness to explore new ideas).
Here are your scores on each of these five psychological variables. The scores can range from 1 to 5.
Extraversion: 2.5
Agreeableness 3.75
Conscientious: 3.375
Emotional Stability: 2.25
Openness: 3.625
In this research we are interested also in how you view the personalities of politicians. Here are the overall scores you provided for each candidate.
Trait Bush Kerry
Extraversion 3.25 / 2.625
Agreeableness 3.75 / 3
Conscientious 2.875 / 2.75
Emotional Stability 3.125 / 2.75
Openness 1.75 / 2.375
Our primary interest, however, is understanding whether people are more likely to endorse candidates who they see as being similar to themselves. (Or, conversely, whether people see as themselves as they see the candidates whom they endorse.) To answer this question, we have computed the overall similarity between the ratings you provided for yourself and the ratings you provided for both Bush and Kerry.
Candidate Dissimilarity score
Bush 0.8
Kerry 0.65
Higher numbers indicate greater dissimilarity. According to these computations, you viewed your own personality as being more similar to that of John Kerry. You do not, however, appear to endorse Kerry over Bush, despite this fact.
We hope you enjoyed this research. Please feel free to forward the link to this study to your friends. [P.M.]
9/17/2004
UMA PAUSA COM KIT KAT (& EVA MENDES):
- Que diabo foi isto?
- Não sei. Não percebi patavina.
- Que gente estranha.
- É.
- Ainda queres o meu telemóvel?
- Claro, Eva, claro.
- Já me esqueci: és TMN ou Vodafone? [P.M.]
O AUTOR RESPONDE: Sobre as suspeitas teóricas e o policiamento mental evidentes no «metapost», não direi nada, porque nem é preciso. A cada época seus caçadores de heresias. Mas dêem-me também direito a umas notas ainda mais breves (e menos pomposas).
1. O post estava escrito há semanas (ainda não era um post, portanto, mas um texto).
2. Isto passou-se assim mesmo (na Bertrand das Amoreiras).
3. «Gótica feliz» é uma referência à canção «Happy Goth», dos Divine Comedy.
4. O uso de «N.» era um filtro para a curiosidade (e agora «N.» já nem precisava desse filtro).
5. As minhas obsessões com a estética e a primeira pessoa não obrigam ninguém (navegar para fora de um blogue é tão fácil como navegar para dentro).
E mais isto:
6. A correspondência de S.P. não é grande coisa.
[P.M.]
METAPOSTISMO, UMA INTRODUÇÃO: Muito se escreveu e tem escrito sobre o «metabloguismo», isto é, a reflexão acerca do universo dos blogues. Mas ainda não se levou a sério o metapostismo, isto é, a discussão sobre como funciona um post. Devo dizer que fui brindado com um dos primeiros «metapostismos» da blogosfera, quando Pacheco Pereira se referiu ao meu estilo como uma sucessão de upgrades e downgrades (encaxilhei o metapost e tudo).
Mas vamos a um exemplo concreto. E podemos pegar precisamente no último post do FdM, chamado «Fique com este». Sobre este post, ficam estas dez notas:
1. O exaustivo uso da primeira pessoa e da experiência individual, como se fosse o único padrão (ou pelo menos o único padrão a que este bloguista tem acesso)
2. O «locus cultural» repetidamente tematizado: o urbanita letrado calcorreia centros de consumo cultural, sendo que essa mera menção funciona como capital simbólico
3. O namedropping artístico, que gera cumplicidades mas também exclusões: há sempre quem fique dentro e quem fique de fora do discurso
4. O uso aparentemente despreocupado do dinheiro, que supõe um desafogo que não deixa de se mostrar (ironicamente?) sensível a um «preço de amigo»
5. A descrição física (ou vestimental) como definidora de uma pessoa, acrescida de comentário jocoso
6. A afirmação reiterada, provocatória, da importância que o bloguista atribui à beleza feminina
7. O modo reiterado, provocatório, com que o bloguista assume os seus defeitos e os apregoa
8. A presença de alguém («N.») que indicia vagamente a existência de uma «vida privada» (ou apenas de uma «vida») mas que de imediato sublinha esse jogo com uma ocultação com ecos claramente literários
9. A inexistência de uma «moral», suspensa pela citação (aparentemente crítica)
10. A impossibilidade de determinar a veracidade dos factos narrados.
Etc, etc. Com o metapostismo, acabou fase ingénua da blogosfera. Agora, cada post é uma tese de mestrado. [P.M.]
FIQUE COM ESTE: Estou numa livraria e reparo, subitamente, numa edição baratíssima da correspondência de Sylvia Plath. Não penso duas vezes, pego no grosso volume e vou para o balcão no qual deixei outras compras. No momento de desmagnetizar, a menina do balcão, uma espécie de «gótica feliz», faz uma cara tristíssima e pergunta, lamentosa, de onde tirei aquele exemplar. Aponto para a estante em causa. «Era o último. Queria guardar este para mim», diz, e faz beicinho dois segundos. Como eu tivesse encolhido os ombros (sem que os tenha encolhido) a menina desmagnetiza e suspira que vai mandar vir outro. Fico contente por encontrar uma livreira que lê livros. Mas a bibliomania não consente franciscanismos. Sorrio, pago, saio. Conto o episódio a N., que me diz que se a menina fosse gira eu teria dito «fique com este, eu espero por outro». [P.M.]
9/16/2004
REVISTA DE IMPRENSA: Sobre Madonna, Vitor Belanciano, no Público, diz as coisas como elas são. Assim:
(...) Não interessa tanto perceber se esses interesses são programáticos ou resultado de uma pulsão interior. Nunca o saberemos. A única coisa que podemos analisar é a forma como os aborda e, nesse sentido, continua igual, manipulando os materiais da cultura pop de forma esteticamente relevante, atribuindo-lhe sentidos precisos, facilmente descodificáveis. O problema, agora como antes, é que, por vezes, em vez de ampliar grelhas de leitura, simplifica-as de forma grosseira - não é esse o preço de quem quer comunicar com uma audiência universal? Isso acontece sobretudo quando o seu foco são mensagens que, de tão gastas, já perderam força, como a ideia de paz que ressoa quando canta a balada "Imagine" de John Lennon, enquanto em fundo desfilam imagens de crianças mutiladas.
Mas alguém esperava outra coisa? Madonna sempre foi entretenimento. Bom entretenimento. Alguém que sabe posicionar-se na curva dos acontecimentos, construindo narrativas a partir deles e devolvendo-os em forma de música e imagem. A verdade é que na plateia ninguém quer saber de duplas leituras.
(...) E onde anda a música no meio disto?
José Pacheco Pereira, no mesmo jornal, faz um novo balanço sobre a blogosfera:
(...) A blogosfera portuguesa mudou muito durante este ano, deixou de ser constituída por um pequeno grupo pioneiro, que a usava quase como um "espaço íntimo", para se tornar, de um dia para o outro (a rapidez é uma característica do meio), mais agressiva, politizada no mau sentido, ressentida e implicativa. Mas essa fase também já passou e o melhor dos primeiros tempos "íntimos" e o melhor da fase de democratização da blogosfera permaneceram. Cerca de 20 a 30 blogues portugueses fornecem todos os dias novas ideias, reflexões, informações, que um cidadão avisado e culto não deve perder.
(...) Excluam-se os blogues e a comunicação social seria diferente. Não porque os blogues sejam lidos por muita gente, mas sim porque são lidos pela gente certa. Os blogues são escritos por uma elite para uma elite, são escritos por estudantes, literatos, políticos, cientistas, investigadores, jornalistas, na maioria dos casos jovens e no início de carreira, e são lidos pelos mesmos grupos sociais e profissionais dos que os escrevem. Um grupo tem relevo especial neste ecossistema que é a blogosfera: são os jornalistas.
Por sua vez, no Diário de Notícias, José Mário Silva publica uma recensão ao fabuloso Michael Kohlhaas:
Sublinhe-se que um dos aspectos mais espantosos deste texto de Kleist reside aqui, neste mis en abîme, na forma vertiginosa como a pequena história - partindo de um caso quase insignificante e individual - se expande, aumenta de escala e se torna parte da grande História, sem nunca perder coerência, nitidez ou precisão narrativa.
Após várias reviravoltas, uma amnistia (conseguida por Martinho Lutero) e um sem número de traições, Kohlhaas acaba por ser condenado à morte - pelos crimes cometidos na sua fúria justiceira - ao mesmo tempo que consegue o desejado castigo de von Tronka. Ou seja: no fim perde tudo, até a vida, em troca do triunfo inglório numa questão de princípio. Em certo sentido, foi o excesso de razão que o empurrou para fora da lei. E há nisto algo de trágico e assustador.
Os blogues, concordo, são óptimos. Mas, de vez em quando, os jornais também trazem bons textos. [P.M.]
AH, O PROUST: Estou com uma amiga num café e peço uma madalena. «Ah, o Proust», diz a minha amiga. Eu admito sem probelma que «ah, o Proust», mas uma madalena era mesmo o que me apetecia. Não era por causa do petit Marcel ter perorado sobre a madalena que eu, só para não me fazer snob, ia pedir um brigadeiro. [P.M.]
9/15/2004
ETERNO RETORNO: Em todo o lado encontro o eterno retorno. E, coisa bizarra, parece quase sempre a melhor solução. [P.M.]
ENREDO: Não há praga maior do que pessoas no cinema ou no teatro a conversarem baixinho porque «não perceberam» qualquer coisa no enredo. Mas proponho alguma tolerância: todos nós não percebemos coisas no nosso enredo (fora do teatro e fora do cinema). E em geral conversamos alto. [P.M.]
ALVÍSSARAS: Num tema do álbum You are the Quarry, Morrissey faz uma referência a «Oliver Cromwell», provavelmente a primeira que surge numa canção pop desde sempre. Agora, no álbum dos Belle & Sebastian Dear Catastrophe Waitress, dou com uma referência ao chocolate «Toblerone», outra quase certa estreia neste formato. Alvíssaras a quem caçar referências ao «piaçaba» numa cançoneta. [P.M.]
ACABAR: Até Shakespeare foi no engano: «tudo está bem quando acaba bem». Errado. Tentem assim: «tudo está bem quando acaba». Esse «está bem» não é um «está bem» de contentamento, mas o mero reconhecimento da ordem natural das coisas. A qual - espero não chocar ninguém - é precisamente acabar. [P.M.]
9/14/2004
A MINHA VIDA: A solução é simples, e está (mais uma vez) num sketch destes senhores (aqui reproduzido sem sotaque):
É que eu assim deixo de vir aqui, vou fazer a minha vida para outros sítios, sítios onde inclusivamente malta me diz «é pá, e tal, sim senhor». E é para lá que eu vou, deixo de vir aqui.
E se em lado nenhum me disserem «é pá, e tal, sim senhor»? Ainda assim, vou «fazer a minha vida» à mesma. Acho eu. [P.M.]
9/11/2004
POR QUEM NÃO ESQUECEMOS: «Somos todos americanos», escreveu o insuspeito Le Monde a seguir ao 11 de Setembro. Nunca uma frase (eventualmente sincera) teve prazo de validade tão curto. [P.M.]
9/10/2004
Devido a um problema com a nossa mailbox, não temos lido (nem, consequentemente, respondido) a correio. Assim que o problema for resolvido, daremos conta disso, mas até lá pedimos que não nos escrevam, para que os mails não se acumulem. Obrigado.
CÓDIGO PENAL: Elephant Shoe dos Arab Strap no discman. A caminho de casa. Às 3 da manhã. Existe certamente um artigo no código que proíba isto. [P.M.]
9/09/2004
COMO NÓS: É um texto mais que clássico, esta fala de Shylock em O Mercador de Veneza de Shakespeare. Afirma a igual dignidade humana do judeu, vítima de tantas afrontas e tantos golpes. Mas é um texto complexo e muito duro que também não escamoteia a possibilidade de uma resposta na mesma moeda. Se existe em Shakespeare um «humanismo», não lhe é alheia a lógica da vítima. Eu não defendo que uma lógica de vítima seja tornada lógica do agressor, nem me parece que a vingança (que surge no texto) possa ser considerada uma coisa nobre (no texto é apenas terrivelmente e ironicamente natural); mas é importante que não se escamoteie a condição de vítima. Os judeus podem ter usado, por vezes, de uma moralidade em causa própria que como que legitima certos abusos – e não estou de acordo com isso -, mas é penoso ver que os mesmos de estão sempre a recordar o nazismo agora tentem diminuir o antisemitismo a uma coisa do passado, a um exagero baseado em notícias soltas, quem sabe mesmo uma obsessão de cães de guardas. Esta fala de Shylock é sumamente poética mas profundamente perturbadora. Shakespeare, ao contrário dos nossos antisemitas light, não ignorava a dupla face de todas as paixões:
Shylock:
He hath disgraced me and hindered me half
a million, laughed at my losses, mocked at my gains,
scorned my nation, thwarted my bargains, cooled my
friends, heated mine enemies—and what’s his reason? I
am a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew hands,
organs, dimensions, senses, affections, passions? Fed
with the same food, hurt with the same weapons, subject
to the same diseases, healed by the same means, warmed
and cooled by the same winter and summer as a Christian
is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we
not laugh? If you poison us, do we not die? And if you
wrong us, shall we not revenge? If we are like you in the
rest, we will resemble you in that.
(Acto III, Cena I, versos 43-61)
VÊM NA BÍBLIA: Num episódio de All in the Family, Archie Bunker faz uma das suas costumeiras diatribes contra os judeus. Alguém lhe pergunta pelo nome dos pais. Archie diz qualquer coisa como (não me recordo exactamente): Samuel e Judith. «Mas essEs são nomes judeus», dizem. Ao que Archie, enfurecido, replica que não, não são nada judeus, são nomes «que vêm na Bíblia». [P.M.]
O HÍFEN: Sou, assumidamente, um filo-semita. E por muitas e variadas razões.
Comecemos pelo mais imediato: muitos dos meus escritores favoritos são judeus. E dois deles foram absolutamente decisivos para mim: Kafka e Cohen (Leonard). Mas não esqueço George Steiner, Philip Roth e Joseph Roth, Bellow, Malamud, Proust, Perec, Primo Levi. Se o modo como viam e viviam a sua «condição» era notoriamente diverso, existe quase sempre um laço, nem sempre evidente, que os une e se sente de forma intensa. E que podemos definir, nomeadamente, como a assunção de um omnipresente universo moral, o qual está cheio de armadilhas, contradições e momentos de glória.
Depois, existem questões por assim dizer «civilizacionais». O anti-semitismo é uma das mais graves manchas na história da Europa. O cristianismo (eu sou cristão) é gravemente culpado dessa lógica que fez dos judeus um povo deicida (um retinto disparate). E nós portugueses temos também a mancha da lamentável e (mimética) expulsão dos judeus em 1497. Mas há o mais, que é mais grave, e não foi em séculos antigos: dos pogroms czaristas ao horror sem nome mas que teve sinistros nomes como Treblinka, Dachau, Auschwitz.
Finalmente, não o escondo, razões políticas: não me esqueço de que Israel é o único estado democrático numa das mais problemáticas regiões do mundo. Um estado que, com defeitos como todos, partilha os mesmos valores que nós europeus temos como fundamentais. Considero pertinentes muitas das críticas feitas a vários governos israelitas (incluindo o actual), reconheço a gravidade de uma pura lógica de retaliação, mas defendo o direito à autodefesa contra fanáticos que, na sua maioria, nem sequer aceitam a existência de Israel. E que, obviamente, abominam os valores em que nós, europeus, acreditamos.
Mas isto são, como disse, temas ainda assim secundários. O essencial é, paradoxalmente, o facto de ser um cristão. Por mais que o cristianismo tenha graves culpas no anti-semitismo ocidental, na sua origem o cristianismo entronca, como é óbvio, no judaísmo. Fico espantado quando dou com gente cristianíssima que se esquece que nove décimos do nosso Livro é também (com algumas variantes) o Livro dos judeus. Que o Antigo Testamento é a sucessão dos sábios e profetas do mundo judaico. E que Cristo era um judeu, como judeus eram os seus próximos com excepção de S. Paulo.
É certo que, para um cristão, a Nova Aliança veio substituir a Velha Aliança de Moisés. Mas não veio, de modo algum, fazer tábua rasa do que está para trás, de inúmeros conceitos teológicos e morais do judaísmo. A tão detestada mundividência «judaico-cristã» é, de facto, cristã e judaica. E assumo-a como minha. Com certeza que o cristianismo trouxe inúmeras novidades e diferenças específicas, sobretudo depois da intensa produção teológica de Paulo; que absorveu primeiro o platonismo e depois uma longa e riquíssima tradição de pensamento propriamente cristão; mas sem os fundamentos judaicos, sem o «pecado», sem a «expiação» ou sem a «salvação», não seria o mesmo. Eu sou cristão e isso significa forcosamente que sou judaico-cristão. E não aceito que me façam deixar o hífen. [P.M.]
E QUEM DIZ ELA: Dois versos de um poema de E. M. de Melo e Castro: «ela é religiosa / porque fode e não goza». [P.M.]
BOOKCROSSING: Ler um livro e depois abandoná-lo é, claramente, o sonho húmido de um crítico literário. [P.M.]
9/08/2004
TOYS: É inaceitável que uma empresa de brinquedos para crianças se chame Toys R Us. Sou só eu que acho que Toys R Us soa a slogan onanista? [P.M.]
9/07/2004
ERRATA: Ao contrário do que talvez tenham ouvido numa homilia dominical, eu não sou «um grande especialista em blogues». Eu não sou um grande especialista em coisa nenhuma. E tenho testemunhas que o provam. [P.M.]
ISSO: Se conversarmos longamente com uma mulher e a conversa for levada ao extremo, a coisa torna-se digna de um sketch do Gato Fedorento:
«Mas afinal isso é importante?»
«Não, não é importante. Não é muito importante. Não é nada importante. Não é lá muito importante. É mais ou menos importante. É um bocadito importante. É um bocado importante. É importante. É bastante importante. É muito importante. É importantíssimo. Não há nada mais importante». [P.M.]
SHUT THE FUCK UP: É comum eu não ouvir o despertador. Mas é quase sempre sinal de que estou em estado de não querer ouvir o despertador. [P.M.]
9/06/2004
DEUS: É possível googlar a palavra «Deus». Mas podemos dar com isto:
Aposto que o título do álbum foi escolhido pelo Nietzsche.[P.M.]
PANS & COMPANY (4): Desde pequeno ouvi dizer que «os homossexuais» (seja isso o que for) detestavam as mulheres. Bem, a julgar pelo cinema, a mentira é flagrante. Entre os grandes cineastas das mulheres estão Cukor, Sirk, Fassbinder, Almodovar e agora Ozon. Os seus filmes são com mulheres, sobre mulheres e do lado das mulheres. Em compensação, alguns homens que gostavam carnalmente de mulheres, como Hitchcock e outros, no fundo detestavam as mulheres como pessoas. Fica a terrível pergunta: para gostar mesmo de mulheres será preciso não gostar delas sexualmente? [P.M.]
PANS & COMPANY (3): Nietzsche publicou em 1882 um livro que se chama em alemão Die Froeliche Wissenschaft e em português A Gaia Ciência (um belíssimo nome). Mas em inglês, diacho, o volume tem este nome: The Gay Science. Estou mesmo a ver a panilagem menos letrada a comprar o ensaio ao engano e os moralistas chalados a pensarem que é um manual para «curar» os homos. Pagava para ver as caras de uns e outros. [P.M.]
PANS & COMPANY (2): Não tenho a mesma perspectiva sobre a homossexualidade que tinha há dez anos. Quero dizer, não a encaro como uma «doença» ou uma «tara» ou assim. É um feitio, não um defeito. A bibliografia, de facto, é eficaz contra o preconceito.
Assim, uma ou outra vez disse em público: «sabem, eu mudei de ideias sobre a homossexualidade». Mas percebi, pela cara das pessoas, que a formulação não era a mais feliz. [P.M.]
PANS & COMPANY (1): Detesto WC’s públicos. Desde sempre. Só mesmo em casos urgentíssimos de «número um» ou (sobretudo) de «número dois» é que corro à casinha. É um sítio que cheira mal mesmo quando está lavado. E muito mais haveria a dizer. Mas por agora quero apenas chamar a atenção para as coisas escritas em WC’s. Sempre me lembro de ordinarices, desde a altura do liceu. Asneirada grossa e alguns desenhecos. Nomeadamente esse clássico que é o indivíduo mictante abocanhado por um monstro (ícone imortalizado em After Hours, de Scorsese). Agora, a moda no WC é a escrevinhadela gay. Pormenores sobre tamanhos, potência, posições. Frequentes referências a «negros» e «polícias». E muitas vezes um número de telefone. E isto em WC de centros comerciais, não em becos de subúrbio. Estou farto. É que estas prosas de engate avacalham o estabelecimento e estragam a mictadela. [P.M.]
9/04/2004
SOBRE A MISANTROPIA (2): Pascaliano, o misantropo também conhece Baudelaire. E sabe que um «quarto» não tem que ser exactamente um «quarto». E por isso anda por aí, mas sempre como se estivesse no seu quarto. [P.M.]
SOBRE A MISANTROPIA: A misantropia não supõe coisa nenhuma (negativa) sobre os outros. Nem supõe coisa nenhuma (positiva) sobre nós próprios. Apenas sugere que cada um está muito bem sozinho consigo mesmo. Blaise Pascal escreveu que as desgraças nascem todas de não sabermos ficar queitinhos no nosso quarto. O misantropo é apenas um devoto pascaliano. [P.M.]
GRILO: Compro CD's. O meu grilo irónico sussurra: «devias trazer era um CD single». Grande estupor. [P.M.]
LITERACIA (2): Um crítico de teatro escreveu uma vez uma resenha negativa a um dramaturgo francês, dizendo «eu gosto de peças que se entendam». Ao que o dramaturgo respondeu: «e eu gosto de críticos que entendam as peças». [P.M.]
LITERACIA (1): Dizem-me uma e outra vez: «não percebi o teu texto». Apetece-me sempre responder: «e o problema é meu»? [P.M.]
NOUVELLE LIBRARIE FRANCAISE: A nova livraria francesa de Lisboa está num sítio (ainda) mais simpático que a outra. O stock piorou (por agora). A simpatia melhorou (só podia). É o único sítio nas redondezas onde se pode comprar no original obras do melhor escritor francês vivo. Que é, sem dúvida, este senhor: Julien Gracq. [P.M.]
9/02/2004
NO ARAME (2): São ainda devidos agradecimentos aos senhores Colin Newman, Graham Lewis, Bruce Gilbert e Robert Gotobed (aka Wire), bem como ao discman «CD WALKMAN D-EJ360» da Sony. [P.M.]
NO ARAME (1): Por me trazerem fora do mundo, agradeço ao Google, à Sky News e à Assírio & Alvim. [P.M.]
GANDA MALUCO: Depois de escrever o post sobre os actores sigo mais uns links e fico banzado: este ganda maluco é Republicano. Não há nada mailindo que uma coisa que não joga, que surpreende. Embora, esperem lá, o Steven tenha cumprido o mais conservador dos mandamentos, o crescei e multiplicai-vos. E que bem mas que bem que ele multiplicou. [P.M.]
FUTSAL: A unanimidade, como sabem, é burra. E no que toca a unanimidade política Hollywood tem sido o expoente máximo da burrice. É por isso um alívio encontrar os poucos membros da aldeia gaulesa (mas não francesa) que estragam o consenso. O Governador da Califórnia, claro, por mais que façam pouco. O grande grande Clint Eastwood. O estiloso Bruce Willis. O rebelde Vincent Gallo. E mais nada? Pouco mais. De vez em quando, encontramos rumores de outros actores que parecem mais GOP que Democratas, como Adam Sandler, Denzel Washington, Robert Duvall ou lindíssima Lara Flyn Boyle. Kurt Russell vota Libertarian Party. E até se suspeita do direitismo de Dennis Hopper, mas esse nãomacredito. Depois, há imensa gente menos conhecida, e alguma gente conhecida embaraçosa (sobretudo na música). E uns casos patuscos, como o «anão» de O Senhor dos Anéis ou o «Paulie» dos Sopranos. Como cheerleaders, temos por exemplo Jessica Simpson e Shannen Doherty. Enfim, é pouquito, ma talvez dê para um jogo de futsal. [P.M.]
9/01/2004
SETEMBRO: De Simon & Garfunkel, «April come she will».
April come she will
When streams are ripe and swelled with rain
May she will stay
Resting in my arms again
June she'll change her tune
In restless walks she'll prowl the night
July she will fly
And give no warning to her flight
August die she must
The autumn winds blow chilly and cold
September I remember
A love once new has now grown old.
«On connaît la chanson». E quando digo «on» quero dizer «eu» (como sempre). [P.M.]