FORA DO MUNDO: Fora do Mundo é, desde sábado passado, o título deste blog e o título do novo livro do Pedro Mexia. O Pedro distingue-se e distingue-nos com uma escolha tão certeira. Está de parabéns. O seu talento é justamente reconhecido. E nós, por aqui, continuamos fora do mundo. [P.L.]
Fora do Mundo
Notas & Apontamentos. [Pedro Lomba, Pedro Mexia e Francisco José Viegas] foradomundo@oninet.pt
5/31/2004
A DISTÂNCIA. À distância, vejo que o Pedro Mexia lança o seu novo livro, que leva o título deste blog. Ele merece. Os seus textos são muito bons. [F.J.V.]
5/10/2004
LUNCHTIME: Almoço depressa, como faço quase sempre. E, como também faço quase sempre, fico o tempo todo colado à conversa da mesa do lado, entre dois cavalheiros quarentões e canastrões. Um dos cavalheiros relembra, impiedoso e acomodado, guerras antigas com a ex-mulher, a propósito dos filhos, dos sogros, dos haveres de cada um. Coisa curiosa: eu nunca conheci um divórcio mas fico sempre especado perante a violência com que os ex falam uns dos outros. O cavalheiro asseverava, num raciocínio de pura lógica, que, não tendo nunca sido «criado da mulher», não poderia agora ser «criado da ex-mulher». O amigo ouvia-o e, entre dois sorvos de tinto, ia acenando que sim, que ele tinha razão, que as mulheres são um matagal ignóbil. Eu estava ao lado e não sabia bem o que pensar. Ao contrário de alguns amigos, eu defendo academicamente que não devemos, em caso algum, manter amizades com as ex. Em caso algum. Mas não defendo o enxovalho público, a abertura de hostilidades, a guerra aberta. Digamos assim: em 1945, Churchill e Estaline sentaram-se em Yalta, à mesma mesa. Cada um foi à sua vida depois. [P.L.]
5/09/2004
LONGE. O riso dos alarves satisfaz-se plenamente em ter razão mesmo diante da morte. Rir da morte é uma coisa; rir por causa da morte é abjecto. Hoje, a morte não significa nada a menos que nos seja próxima. Às vezes, nem isso. As coisas frágeis são ainda mais frágeis nestes dias. De vez em quando conhecemos alguém que se vai tornar nosso amigo, mas reconhecemos mais facilmente esse alarvidade nos que têm certezas, fluência, organização, gramática, justificação, aquele olhar frio que atravessa as audiências. Montaigne dizia que o retórico está sempre a fabricar um sapato grande demais para um pé demasiado pequeno; porque, as coisas, às vezes, são como são: brutais e vulgares. Uma coisa brutal e vulgar é apenas brutal e vulgar. A menos que alguém lhe junte uma justificação brutal e vulgar. Então, passa de vulgar a abjecta. Diante disso tudo, o melhor é ficar fora do mundo. [F.J.V.]
5/08/2004
ESTAR FORA DO MUNDO. O pessimismo dá-nos uma aura de confiança. Nada pode ser pior depois disto. O pessimista tem os seus crepúsculos fora do mundo: desconfia de si próprio, mais do que do mundo. Nem é um defeito, um desgosto, um desânimo. A única coisa que alimenta o pessimista são as frases, as suas e as dos outros. Agora leio Ortega, depois de Kafka; e devia ter lido ao contrário? Curiosamente, não. O pessimista Ortega detectou os sinais, Kafka viveu-os com mais perigo. Ele não teria sobrevivido aos campos da morte. O riso de Kafka salvou-o: ele ria da sua própria salvação. [F.J.V.]
DEPOIS DE KAFKA, 2. Por isso fizemos a pergunta muitas vezes, depois de ela ter sido feita: a poesia é possivel depois de Auschwitz? Podemos rir, depois de Kafka? Rir daquela maneira, digo eu: solta, em redor da literatura, só da literatura e do absurdo que ela transportava, antes de ser tragédia? [F.J.V.]
DEPOIS DE KAFKA. O riso de Kafka é amargo? Não. Leio as histórias sobre o riso dos «amigos literatos» de Kafka enquanto ele lhes lia as páginas que hoje nos provocam mais apreensão. E eles riam, Kafka ria. Eu sei que a cena já foi referida neste blog várias vezes, mas esta distância, esse riso é como uma premonição: todos os absurdos se realizaram. Kafka navegava no meio da morte, atravessando o seu rio, e o que era tão evidente parecia-lhe absurdo ao ponto de lhe provocar o riso. «Tão evidente»: isto, o nosso mundo de agora, o horror, o abjecto, o medo, o fim das tardes nos cafés onde os «amigos literatos» ouviam poemas, castigavam os adversários, sorriam dos versos mal construídos. O mal caminhava por aquelas ruas. Viena, Berlim, Paris. Hoje podemos reconstituir a história desse riso, e seria um belo filme. As gargalhadas de K., aliás Kafka, Franz, o raccord imperfeito abrindo sobre os campos da morte do século, onde tudo foi morrendo. Às vezes penso nos campos da morte do século. Tão vulgares, banalizados, passam na televisão à velocidade que sabemos, imagens sobrepostas. Não rimos. Não choramos. O humor dos judeus também ri do futuro, antecipa-o: transporta a tragédia como os livros de Kafka. Não é só literatura. Não é só o rio da morte. É o abjecto da política de hoje, as imagens falsificadas, o riso dos alarves, o esquecimento. [F.J.V.]
5/04/2004
MAIS KAFKA: Já alguém sugeriu que este é um blog sobre Kafka. É mesmo. Não queremos desapontar ninguém. Fica então esta «pequena fábula»:
«Ah», disse o rato, «o mundo cada dia fica mais apertado. A princípio era tão grande que até me metia medo, depois continuei a andar e ao longe já se viam os muros à esquerda e à direita, e agora - e não passou assim tanto tempo desde que eu comecei a andar - estou no quarto que me foi destinado e naquele canto está já a armadilha em que vou cair.» «Tens de inverter o sentido de marcha - disse o gato, e comeu-o». (Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos, trad. João Barrento). [P.L.]