QUEDA: Leio os Discorsi de Maquiavel. «Os homens nunca sabem ser completamente bons nem completamente maus». Ponto para Maquiavel. Anoto duas vezes no caderno o título de um dos capítulos: «Como pode cair um Estado por causa das mulheres». [P.L.]
Fora do Mundo
Notas & Apontamentos. [Pedro Lomba, Pedro Mexia e Francisco José Viegas] foradomundo@oninet.pt
4/21/2004
4/20/2004
PLATÃO-1 - ARISTÓTELES- 1: Ouço falar na doença bipolar. E sei, porque sei, que a bipolaridade é uma doença de séculos. Schlegel, por exemplo, dizia que cada um de nós é ou platónico ou aristotélico. Os platónicos valorizam as ideias, os aristotélicos atêm-se à experiência. Conheço muitos aristotélicos e uns quantos platónicos. Eu próprio sou um aristotélico quando é preciso, porque - facto importante - sou frequentemente aquilo que é preciso ser. Mas fora disso, sou outra coisa. Não sou platónico, não sou aristotélico. Posso ser as duas coisas. Posso não ser nenhuma. E vou ficar por aqui para não me confessar mais. [P.L.]
4/17/2004
O RISO DE KAFKA. Entro na conversa a meio, mas esse riso à volta de Kafka era dramático e sempre me surpreendeu. Diz-se, mesmo, que Kafka ria também e que não conseguia terminar as leituras em voz alta dos seus livros (aos amigos e ao «círculo de literatos»). Quer dizer: por que não rimos hoje dessas primeiras páginas de A Metamorfose ou de O Processo? Por sabermos que tudo é possível, ou por sabermos que já nem tudo é possível? [F.J.V.]
4/11/2004
RESSUSCITOU: Há quem acredite que Cristo ressuscitou, há quem não acredite. Mas todos os homens de boa vontade que viram Ordet acreditam que Inger ressuscitou. [P.M.]
4/08/2004
KAFKA LAUGHS: Muitas vezes, quando estava a ler os seus textos aos amigos, Kafka não continha as gargalhadas. Não creio que fosse uma blague nem um acto teatral. Podemos facilmente rir com Kafka, como podemos facilmente rir com Beckett. Mas quem ri com um ou com outro aceitou primeiro uma certa dose de desespero. [P.M.]
4/07/2004
A BÍBLIA DE KAFKA: São legião os escritores influenciados pela Bíblia (Northorp Frye tem um interessante ensaio sobre o tema); mas raros autores são literariamente tão bons como a Bíblia. Dessa heresia Kafka era capaz: a parábola do guardião da porta é ainda mais poderosa que, digamos, o livro de Job. [P.M.]
4/06/2004
CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES: Eu folheava despreocupado um álbum de fotografias, já não sei de quem; à minha frente, uma mulher velha, muito velha, lia O Choque do Islão de Marc Ferro. [ P.L.]
4/05/2004
KURT, DEZ ANOS: Não se trata de saber porque tiveram os Nirvana tamanha importância para mim: suponho que foi pelas mesmas razões muitos outros, por fazerem Pixies com letras sofridas, REM com raiva punk, metal melódico. Mas ainda não sei explicar exactamente porque me custou tanto a morte de Kurt Cobain, faz hoje dez anos. Poucas vezes mortes de desconhecidos me deixaram assim prostrado. Fiquei tristíssimo com a morte de Kieslowski, mas nada que se compare. Quando, num sábado de 1994, me disseram que Cobain tinha dado um tiro na cabeça, pensei que o próximo tiro era para mim. Tinha 21 anos, Kurt tinha 27. Eu estava na merda, por razões banais, e o louríssimo estava na merda, por razões graves. A morte - e essa que chegava assim - era gémea do meu fantasma maior, do meu amigo mais duradouro, dessa palavra que não quero escrever. Nada sei sobre o sofrimento de Kurt, sobre a existência de Kurt, sobre a sua miséria e revolta. Nada na sua biografia rima com a minha. Mas a morte rimava. E eu era um adolescente, mesmo que tivesse passado a adolescência. O fim dos Nirvana? Nem pensei nisso. Pensei na morte de Kurt, na morte que não espantamos com canções ou outras fantasias, porque não lhe podemos escapar quando nos marcou. O sofrimento sublimado em arte? Não: o sofrimento acabando em nada. Num tiro na cabeça. Num doce refúgio. Doce e porco. Cabrão. Foi o que pensei, no início: matou-se? cabrão. Mas não. Nada disso. Nem cobardia nem coragem. Como escreveu outro dos meus autores: «tudo isto mete nojo». E se mete nojo, faz sentido. O tiro, ou o que seja. Morre-se? Não se morre. Morre o corpo, ou o corpo sobrevive. As coisas correm bem. Ou mal. Depende de quem define uma coisa e outra. Mas, no fim, nada é absurdo como parece para aquele que morre: nem a sua própria morte, que quem morre não conhece porque está irremediavelmente fora de si. Fora do mundo. Eu sei. Eu também morri em 1994. Há dez anos. E estou agora aqui a escrever isto. [P.M.]
4/04/2004
ADIVINHEM QUEM VOLTOU: O rapaz perdeu os amigos (o álbum chama-se Absent Friends) e ganhou uma esposa ruiva. Mas isso pouco nos importa: o que interessa é que Neil Hannon regressou. Em breve aqui teremos uma pequena crítica do disco. Até lá, comprem o CD, se fazem favor. [P.M.]
4/03/2004
O SOPRO DO CORAÇÃO (2): Reconheço em Citizen Kane todos os méritos que a crítica há décadas tem apontado. Mas não há nada em Citizen Kane que me comova como o começo e o final de Touch of Evil, do mesmo Orson Welles. Nada que me tenha tocado como esse plano-sequência que parece prolongar-se pela nossa vida adentro, essa cena na ponte, tão desesperada, tão negra, tão irremediável. Para mim, Touch of Evil é maior que Citizen Kane. E esse «para mim» é o único critério que (me) interessa. [P.M.]
4/02/2004
CRISTOS DA LITERATURA: Gosto muito de Kafka. Divido os escritores entre aqueles de quem seria amigo e aqueles que não desejaria sequer conhecer. E seria, por muitas razões, amigo de Kafka. O seu diário e as suas cartas revelam um homem atormentado mas decente, duas características da condição humana que prezo. Como escritor, Kafka era fragmentário e frustrado. Deixou contos e romances por acabar, pequenas narrativas, histórias premonitórias, uma letra do alfabeto. Duvido que conhecesse o génio que tinha, duvido que adivinhasse a sua sobrevivência como escritor. Gosto muito de Kafka porque o encaro como um Cristo literário, alguém que sofreu por nós, para que não sofrêssemos como ele a maldição solitária, a condição de expatriado, o peso do mundo. Os caminhos de Kafka são também os nossos. Mas Kafka precede-nos. Ele foi o primeiro a passar. [P. L.]
4/01/2004
O QUE HÁ NUM NOME?: Sofro de um pânico absurdo com nomes, com nomes de pessoas, de lugares, de objectos. Todas as coisas já existem antes de nós falarmos delas. Mas num certo sentido, as coisas não existem sem nós, que as nomeamos, que as retiramos do seu silêncio, da sua inexpressividade, do seu deserto verbal. [P.L.]