3/31/2004

FIM-DE-CONVERSA: Talvez eu deva lembrar uma daquelas conversas que ficam. Lembrar o meu interlocutor de uma noite de Julho. Tímido, medroso, desenraizado. Apagar o que resta. Fechar tudo. O meu interlocutor falava pouco. Procurava cumprir o que lhe pediam sem grande interesse ou vontade. Ao ouvi-lo, eu percebia o quanto ambos ansiávamos pelo futuro. Queríamos surpreender-nos. Queríamos que o tempo arrumasse as coisas em falta. Há um ano, recebi a visita do meu interlocutor. Falámos sobre assuntos menores, como se nos tivéssemos esquecido do resto. Nenhum se apercebeu do esquecimento, nenhum se apercebeu de já não ser o mesmo. Não o tornei a ver depois disso. Não o verei mais. [P.L.]

3/30/2004

AMANHECE: Acontece algumas vezes, não muitas: amanhece e estou encostado na cama, acordado, terminando um livro ou um texto. Sinto-me estranho. Sinto-me mal. E não devia. Se tivesse coragem, devia ser sempre assim:ficar com um texto ou um livro até que viesse a luz. Com ou sem metáfora, pouco importa. [P.M.]

3/29/2004

FAMÍLIA: Pai e filho, em silêncio, no balcão de um restaurante. Fico atento ao que não dizem e ao que não fazem. Tudo neles me parece triste, desolado, insatisfeito. Um fim-de-semana por imposição, um divórcio de desgosto e não de litígio, a ignorância do rapaz que não se apercebe de nada e ainda não quer saber. Depois aproximam-se uma mulher e uma rapariga pequena que se juntam a eles como se nada fosse. Os quatro acabam a conversar. Dou meia-volta. Eu procurava uma história fatídica mas tinha achado uma coisa bem diferente. Tinha achado uma família. [P.L.]

3/28/2004

LUZ INDIRECTA: Nem sempre gostamos de um escritor pelas mesmas razões que levam um amigo a gostar desse mesmo escritor. Mas deste todos gostamos pelas mesmas razões. Não sabemos dizer exactamente quais são? Mas «exactamente» não faz sentido. Só a luz indirecta faz sentido. [P.M.]

3/27/2004

DIGA, DIGA: Não tenho opinião sobre a nova 2 porque vejo pouca televisão. Mas consigo dizer qualquer coisa sobre um programa do Público e da Rádio Renascença que passa precisamente na 2, o «Diga lá, Excelência». Faço uma simples pergunta: «Porquê Excelência?». Porquê tanto respeitinho? Não quero insultar nenhum dos entrevistados, quase sempre gente séria e honrada. Mas porquê este apego provinciano do país aos títulos, ao 'doutor', ao 'engenheiro' e, agora, ao 'excelência'. Porque não «Diga lá, sacana»? Ou então, pela negativa, recordando palavras imortais de João César Monteiro, «Cala-te, boi». [P.L.]

3/26/2004

CATOLICISMO: Os pais deram com ela lendo a Bíblia. E perguntaram: «Estás bem? Passa-se alguma coisa»? [P.M.]

3/25/2004

O SOPRO DO CORAÇÃO: Periodicamente, jornais e revistas fazem listas dos «maiores» filmes, romances, discos. Percebo o lado canónico da operação, mas interessa-me pouco. Os «maiores» ou os «melhores» discos, romances ou filmes não são necessariamente os «mais importantes» para nós. Posso gostar muito de Citizen Kane (e nem sou um grande fã), mas para mim foi muito mais importante Paris,Texas. Reconheço que a Guerra e Paz é um monumento, mas tenho mais afecto pelos Cadernos de Malte Laurids Brigge. E Nick Drake, para mim, vale quinhentos álbuns dos Beatles. [P.M.]

3/24/2004

Porquê «Fora do Mundo»? Não pretendemos certamente manter uma página nefelibata ou alienada, umbiguista ou autista. Mas queremos, sempre, escrever sobre a nossa «agenda». No sentido mais pessoal do termo. E sobre um «mundo» que está fora do outro porque é o nosso – o de cada um dos três -, mas que, obviamente, não existe no vazio. Ao nosso lado está sempre tudo o que faz o nosso mundo, aqueles que amamos, os nossos livros, os nossos medos. Além de que nenhum de nós deixará de escrever sobre o outro «mundo» (o propriamente dito) ou sobre a outra «agenda» (a dos jornais) nos blogs individuais e na imprensa. Mas não aqui. No Fora do Mundo não estamos realmente fora do mundo. Mas, para nós, como escreveu Wittgenstein, o mundo é tudo o que é o caso. Bem-vindos. [P.M.]